CONSTRUÇÃO, DESCONSTRUÇÃO
O legado do neoconcretismo*
Sonia Salzstein
RESUMO
Para os artistas ligados ao neoconcretismo brasileiro, a experiência construtiva resultaria do gesto extremo de passar a limpo e retomar em novo patamar as promessas extraviadas
das vanguardas do construtivismo europeu, gesto, ao ver desses artistas, tantas vezes postergado na arte europeia e
norte-americana da primeira metade do século xx.
PALAVRAS-CHAVE: Neoconcretismo; arte brasileira contemporânea;
construção; desconstrução.
ABSTRACT
For the artists of Brazilian neoconcretismo, the constructive
experience should result naturally from the extreme gesture of reconsidering and reappropriating in a new manner the
lost promises of European constructivist avant-gardes, a gesture that, in the view of these artists, had been oftenly
postponed in European and North American 20th century art.
KEYWORDS: Neoconcretismo; contemporary Brazilian art; construction;
deconstruction.
[*] Ensaio publicado originalmente
no catálogo da exposição “Das Verlangen nach Form: neoconcretismo
und zeitgenössische Kunst aus Brasilien” [O desejo da forma: neoconcretismo e arte contemporânea brasileira], Akademie der Künste, Berlim,
setembro a novembro de 2010.
1.
Um bom atalho para o necessário reexame do legado
do neoconcretismo, que se formou no Brasil por volta de 1957, como
dissidência de um movimento concreto de visada nacional surgido alguns anos antes, seria interrogar o uso recorrente dos termos
“construção” e “construtivo” no ambiente artístico do país, especialmente entre o final dos anos 1950 e meados da década de 1960. Não
se pode negligenciar o fato de que, à distância de um trivial “estilo
internacionalista” que vinha ganhando hegemonia na produção artística mundo afora desde o início da década de 1950, e ao qual talvez
se imagine poder consigná-los, esses termos apareciam enunciados
de maneira inteiramente nova em muitos escritos de Hélio Oiticica
e do poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, então espécie de porta-voz
do grupo carioca.
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Veja-se, por exemplo, a seguinte formulação de Oiticica, do princípio dos anos 1960, na qual comenta os desdobramentos recentes
de seu trabalho, que julgava aproximar-se cada vez mais de uma escala ambiental, chegando a sugerir um paralelo entre a “construtividade” que esses desdobramentos anunciavam e as drip paintings de
Jackson Pollock:
… o penetrável abre novas possibilidades, ainda não exploradas, dentro
desse desenvolvimento, a que se pode chamar construtivo, da arte contemporânea. Um esclarecimento se faz necessário, sobre o que considero como
“construtivo”. […] Cabe nesse caso reconsiderar aqui o que seja construtivismo, já que foi esse o termo usado para a experiência dos russos de vanguarda [… ]. Ora, apesar das ligações que existiriam entre o que se faz hoje e
o construtivismo russo, não creio que se justificaria só por isso o termo “novo
construtivismo”. O fato real, porém, é que se torna inadiável e necessária
uma reconsideração do termo “construtivismo” ou “arte construtiva” dentro
das novas pesquisas em todo o mundo. Seria pretensioso querer considerar,
como o fazem teóricos e críticos puramente formalistas, como construtivas
somente as obras que descendem dos movimentos construtivista, suprematista e neoplasticista, ou seja, a chamada “arte geométrica”, termo horrível e
deplorável tal a superficial formulação que o gerou, que indica claramente
seu sentido formalista. […].
Considero, pois, construtivos os artistas que fundam novas relações
estruturais, na pintura (cor) e na escultura, e abrem novos sentidos de
espaço e tempo, os que acrescentam novas visões e modificam a maneira
de ver e sentir — portanto, os que abrem novos rumos na sensibilidade
contemporânea…
Se De Kooning sintetiza problemas de cor, já a contribuição de Pollock parte da estrutura. Provoca um verdadeiro abalo sísmico na estrutura
do quadro1.
De modo implícito, os termos serviram, também, para descrever
algo essencial das démarches de outros integrantes do grupo neoconcreto, como Lygia Clark, Lygia Pape, Wyllis de Castro, Amilcar de Castro e Franz Weissmann — um conjunto bastante heterogêneo de artistas,
no qual, entretanto, seria comum a reivindicação, tão cara à tradição
construtiva, de que “o trabalho é a operação do trabalho”. Emblemático dessa reivindicação, o texto “Teoria do não objeto”, escrito em 1959
por Ferreira Gullar, inicia-se com a seguinte explanação:
A expressão não objeto não pretende designar um objeto negativo ou
qualquer coisa que seja o oposto dos objetos materiais com propriedades exatamente contrárias desses objetos. O não objeto não é um antiobjeto mas um
objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências senso104 CONSTRUÇÃO, DESCONSTRUÇÃO ❙❙ Sonia Salzstein
[1] Oiticica, Hélio. “A transição da
cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade” (Aspiro ao
grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco,
1986, pp. 54, 59, passim). Sabe-se que
em 1958, no artigo “The Legacy of
Jackson Pollock”, Allan Kaprow chegara a conclusões semelhantes às do
artista brasileiro, sobre a importância
da pintura de Pollock para a revelação
de uma dimensão “ambiental” à arte
contemporânea. Não há, entretanto,
o mais leve indício de que Oiticica
tenha conhecido o artigo de Kaprow,
publicado na revista Art News.
[2] Não analisarei, neste ensaio,
a referência óbvia que o texto faz à
filosofia de Merleau-Ponty, tampouco abordarei o modo relevante
como essa filosofia propagou-se no
meio artístico carioca daqueles anos,
antecedida, aliás, por um marcado
interesse pela fenomenologia, que o
crítico Mario Pedrosa tratara de divulgar, a partir dos estudos que havia
desenvolvido sobre a fenomenologia
da percepção e sobre a Gestalt. O texto de Gullar encontra-se, em versão
bilíngue português-inglês, em Experiência neoconcreta: momento limite da
arte (São Paulo: Cosac Naify, 2007,
pp. 90-100).
[3] Gullar, Ferreira. “Esculturas
de Amilcar de Castro”, em Amaral,
Aracy (org.), Projeto construtivo brasileiro na arte, 1950-1962. São Paulo/
Rio de Janeiro: Funarte/Secretaria
da Cultura, Ciência e Tecnologia do
Estado de São Paulo/Pinacoteca do Estado/Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro, 1977, pp. 241-2.
[4] Permita o leitor que eu proceda,
provisoriamente, a tal generalização, para alcançar a contribuição da
vertente construtiva brasileira na
história do modernismo da segunda
metade dos anos 1950; não é o caso
discutir neste ensaio a ressonância
diversa que os termos tiveram nos
contextos europeu e norte-americano, como também o modo tão especial como a arte norte-americana
reconfigurou a tradição moderna
europeia segundo um viés muito
próprio no segundo pós-guerra. Ver,
a respeito do espraiamento mundial
das vertentes construtivas, da década
de 1920 à atualidade, a obra The Tradition of Constructivism, organizada
por Stephen Bann (Nova York: Da
Capo Paperback, 1974). O estudo é
surpreendentemente omisso em relação às importantes correntes construtivas da América Latina. A respeito
da relação da arte norte-america com
a tradição moderna europeia no pósguerra, ver o ensaio de T. J. Clark, “In
Defense of Abstract Expressionism”,
embora nele o autor focalize especificamente o expressionismo abstrato vis-à-vis sua linhagem europeia
(Farewell to an Idea/Episodes from a
History of Modernism. New Haven e
Londres: Yale University Press, 1999,
pp. 371-403).
riais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico,
integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar rasto. Uma pura
aparência.2
O mesmo Ferreira Gullar, ao abordar a escultura de Amilcar de Castro em 1961, não deixa dúvidas a respeito da importância, na nova arte
a que se lançavam, desse chamamento a uma franqueza construtiva:
Amilcar de Castro integra o grupo de artistas neoconcretos e, como tal,
realiza uma experiência que tem sua origem na estética concretista, que ele
aprofunda. Daquela etapa de indagações e estudos, Amilcar reteve algumas
catracterísticas gerais e positivas: vontade de despojamento, de estruturas definidas, de expressão direta (grifos meus) […] Amilcar desce
a uma concepção anterior à forma, para surpreendê-la em seu nascedouro,
captá-la ao nascer.3
De passagem, note-se que se Gullar não emprega, nesse último
escrito, as expressões “construtivo” e “construção”, ele por certo
as pressupõe em sua abordagem do trabalho de Amilcar de Castro; é como se elas aparecessem no texto reconfiguradas em noções
de origem e formação, como também na declaração enfática que aí
se adivinha, da arte como “experiência” e “processo”. Trata-se, em
todo caso, de uma constelação de termos afins, que ademais retornarão em períodos posteriores no debate da arte brasileira, associados a um universo bastante heterogêneo de artistas. Importa desde
já observar o contraste entre o sentido que um vocabulário ligado à
tradição construtiva ganhava no ambiente artístico brasileiro, e os
usos que na época os europeus e os norte-americanos faziam desse
mesmo vocabulário4.
Sabe-se bem que no correr dos anos 1960, o cenário cultural europeu e norte-americano reclamava (escusado dizer que em registros
muito diversos) do ideário construtivo um aggiornamento, que deveria
colocar a produção artística à altura das novas condições de vida em
uma sociedade tecnológica avançada, na qual “construção” e “construtivo” reportavam-se, em primeira instância, a procedimentos de seriação, estandardização, repetição e automação da forma, quando não
à universalização de uma lógica modular, algo como a generalização,
ao limite do anonimato, de uma antiforma. Raramente as correntes
“neoconstrutivas” europeias e norte-americanas (a arte cinética, a pop,
o nouveau réalisme e mais tarde o minimalismo não deixavam de ser
algumas de suas manifestações) ressoariam a dimensão expressiva e
gestual tão cara aos neoconcretos. E nada mais distante delas do que
o apelo neoconcreto a uma reerotização da experiência estética, para
muito além do espaço normativo da cultura.
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Não se desconhecem as ressonâncias fenomenológicas, digamos, de alguns trabalhos minimalistas, o de Robert Morris sendo
talvez o exemplo mais evidente; ainda assim, é preciso admitir que a
eventual dimensão fenomenológica do minimalismo não antagoniza com um contexto cultural marcado, como se disse, pela seriação,
estandardização, repetição e automação da forma – pelo contrário,
ele de algum modo o pressupõe, e parece visar superá-lo em um ato
de síntese positiva.
Vale ressaltar, igualmente, que os próprios protagonistas do movimento neoconcreto se reportaram frequentemente àqueles termos
para descrever o tipo de empreitada em que se viam envolvidos. Se não
sempre a eles, a premissas éticas historicamente associadas à tradição construtiva europeia, à ideia da obra como processo, à franqueza e
transparência da operação mediante a qual a obra se constituia, à promessa de que aquela franqueza construtiva extravasaria naturalmente
para a vida cotidiana, e que por fim assinalaria, como um sopro liberador despertado pela subjetividade reformada de dentro, uma cunha nos
rumos da sociedade contemporânea.
Não se trata, portanto, de rubricas providenciadas pelo jornalismo
e pela propaganda cultural, à revelia dos artistas; os neoconcretos as
empregavam com rigor, e ao que tudo indica, não ignoravam o tanto
de provocação que carrearia um vocabulário tão caro às correntes produtivistas e funcionalistas da arte e da arquitetura modernas, quando
incorporado a um ambiente que pretendia, no polo oposto, fazer o tábula rasa de um onipresente sistema da cultura com sua malha ubíqua
de instituições, que acabara por sufocar a possibilidade de uma “experiência” da arte (no sentido forte que “experiência” tem quando reivindicada como a única modalidade de acontecimento, na modernidade,
que pode resistir a essa espécie de fantasmagoria do acontecimento
que é a “informação”, para emprestar aqui a célebre distinção feita por
Walter Benjamin).
É notável que essas ideias tenham redundado, para a arte brasileira,
em uma “estética construtiva”, sóbria e, quase se poderia dizer, vernacular (em igual medida, ela talvez pudesse ser descrita como “desconstrutiva”). Em meados da década de 1960, tal “estética construtiva” já
mostrava, principalmente nos trabalhos de Hélio Oiticica, Lygia Clark
e Lygia Pape, a corrosão progressiva das facetas otimistas e idílicas que
de início a haviam impulsionado. Esse desencantamento (entretanto
imbuído de vitalidade e ânimo prospectivo) já estava anunciado desde
a dispersão do grupo neoconcreto, em 1961, e apenas havia recrudescido com a perplexidade de artistas e críticos em face da inesperada
associação, que então se empreendia no Brasil, entre o totalitarismo
do regime militar instalado em 1964 e um projeto de modernização,
que bem ou mal continuava em curso.
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O chamado movimento tropicalista seria uma resposta radical e
insolente a esse estado de coisas, com seu ecletismo desabusado a justapor materiais da cultura comercial a objetos caros à cultura moderna
brasileira, ou a figuras ressonantes de uma mestiça e ecumênica “peculiaridade brasileira” que não se havia descaracterizado sob a modernização, como o samba, a bossa nova e a canção folclórica nordestina,
já então assimilada pela indústria fonográfica.
De fato, aquela “estética construtiva”, ou o quebra-cabeça de reminiscências que ela havia fixado para sempre no horizonte da modernidade brasileira, parece ter persistido, problemático, vivo e intrigante, em parte considerável da arte que se produziu no país desde
então. Curiosamente, a memória dessa “estética construtiva”, que se
anunciaria como a necessidade dos trabalhos de um ato permanente
e deliberado de reconstituição, de retroação a um momento formativo, nem sempre revelaria conexão direta com a experiência neoconcreta; poderia estar presente em artistas tão diversos como Alfredo
Volpi, Mira Schendel, Waltercio Caldas, Tunga, José Resende, Iole de
Freitas, Jac Leirner e Nuno Ramos — para citar apenas alguns. Nestes — é importante observar — um procedimento construtivo poderia
levar a resultados nada construtivos; se é verdade que os trabalhos
franqueavam ao observador, retroativamente, seu processo de constituição, não enfeixavam, por isso, uma moral do fazer, tampouco
uma pedagogia da demonstração.
2.
Não há como negar o tanto de desconforto que pode causar a
defesa da relevância de uma linhagem construtiva na arte contemporânea brasileira, em um contexto cultural no qual os ingredientes
historicamente ligados à tradição construtiva não aparecem, nem
de longe, conectados de maneira evidente aos pressupostos que a
haviam feito vingar na arte europeia e norte-americana do século xx.
De fato, a conservadora modernidade brasileira lidou a relativa distância com as forças políticas, sociais e econômicas desrepresadas
no rastro da tradição burguesa, iluminista e republicana que havia
propulsado a modernidade europeia no século xviii. Ela pôde preservar seu panache aristocrático durante muito tempo, e transigir,
propondo-lhes medidas paliativas, com os fenômenos de violência
e desagregação social que compunham estruturalmente a manifestação “periférica” da modernidade.
Não havia conhecido, portanto, a autoconsciência precoce das classes trabalhadoras, o fenômeno de generalização de uma classe média
pequeno-burguesa ciosa de seu protagonismo político, econômico,
social e cultural, e por isso mesmo beligerante em face de qualquer
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recondução de interesses oligárquicos. Jamais haveria de desfrutar,
ademais, a autoconfiança no domínio de mercados transnacionais,
que havia assegurado, à modernidade nas economias centrais, o
projeto de estados nacionais soberanos, as engrenagens institucionais do poder político universal da cultura burguesa e as expectativas de progresso e bem-estar social de uma racionalidade técnica
em avanço permanente.
Não se trata de dizer, em absoluto, que a modernidade havia sido
menos verdadeira aqui do que em seu palco nevrálgico de operações; é
que a modernidade brasileira não foi incendiada pela liberação pontual
das forças sociais transformadoras que historicamente a ela estavam
associadas em seus centros irradiadores, e pela consequente exigência
de uma reinvenção dramática do lugar social da arte, que empurrou
à saga de experimentações da produção artística no século xx. Aqui,
diferentemente, o desrepresamento dessas forças era mediado, refreado, rarefeito a tal ponto que elas se revelavam de maneira difusa, sem
nunca alcançarem a forma imperativa da transformação histórica, a
qual de todo modo se dava, mas mediante sucessivas acomodações,
despistamentos e recalques.
Isso talvez torne o neoconcretismo, se comparado a tantas correntes da produção contemporânea surgidas a partir da década de 1960,
mais vago e ambíguo do ponto de vista formal e ideológico, e ainda singelamente despolitizado. Mas talvez sejam esses os aspectos que lhe
conferem maior interesse — são eles, afinal, que dizem respeito a sua
nonchalance antimoralista, a sua verve profundamente antinormativa.
Por ora, o que de fato importa observar é que um horizonte construtivo prescindia, na visão emancipadora que esses artistas tinham da
arte, de qualquer aposta feita no progresso tecnológico ou no destino
democrático e universal da cultura de massa — nenhum vestígio, enfim, de uma visão programática da arte na nova dimensão pública e
institucional da cultura.
3.
De fato, para os neoconcretos, uma experiência construtiva resultaria naturalmente do gesto extremo de passar a limpo e retomar em
novo patamar as promessas extraviadas das vanguardas do construtivismo europeu, gesto, ao ver desses artistas, tantas vezes postergado
na arte europeia e norte-americana da primeira metade do século xx,
e para o qual naquele momento eles se sentiam preparados, de modo
único. O fato de se situarem nas bordas do circuito internacional de
arte, em vez de ser percebido por eles como um empecilho, parecia vir
a calhar, dada a radicalidade que a saga do modernismo àquela altura
reclamava, em face do estado malparado em que, segundo eles, as coi108 CONSTRUÇÃO, DESCONSTRUÇÃO ❙❙ Sonia Salzstein
[5] Cf. Skidmore, Thomas. Brasil: de
Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982, p. 204.
[6] Entre os autores estrangeiros
que se manifestaram no mínimo
reticentes em face daquele empreendimento monumental que se anunciava em nome de uma modernidade
que teria se propagado para além das
economias centrais, o crítico e historiador da arquitetura Guilherme
Wisnick menciona a fúria ortodoxa
de Max Bill, que condenava Brasília
por considerá-la “arquitetura bárbara e antissocial”, e a posição cética
de autores como Bruno Zevi e Giulio
Carlo Argan. Era de esperar que Zevi,
defensor de uma “arquitetura orgânica”, mostrasse pouco entusiasmo
em relação ao projeto de Brasília; o
argumento de Argan, entretanto,
publicado em 1954, atingiria o calcanhar de aquiles da modernidade
brasileira. ”Na análise de Argan”, diz
Wisnick, “o problema fundamental
dessa arquitetura reside precisamente no seu sucesso inicial. Pois a sua
autossatisfação, algo indulgente e
imatura, obtida sobretudo na escala
restrita do edifício isolado, impede
uma compreensão mais aprofundada das razões sociais que, na Europa,
determinaram a criação dos cânones
formais modernos. O que faz com
que a produção arquitetônica brasileira não se espraie para o campo
do urbanismo, onde se encontram
os mais sérios problemas relacionados à moradia e às periferias das
cidades, e também não chegue a
romper a barreira de uma criação
feita ‘de cima para baixo’, conduzida por uma intelligentzia técnica”
[Wisnick, Guilherme, “Modernidade congênita”, in Forty, Adrian e
Andreoli, Elisabetta, (orgs.). Arquitetura moderna brasileira, Londres:
Phaidon, 2004, p. 28. Versão em
inglês: Brazil’s Modern Architecture.
Londres: Phaidon, 2004].
sas se encontravam por toda parte. Nada, afinal, mais eloquente para
persuadir da inevitabilidade desse gesto – que era, a um só tempo,
culminação de um processo histórico e golpe de misericórdia em um
modernismo desbotado e “formalista” — do que a metáfora da tábula
rasa que um país jovem e sem tradição podia encarnar.
De todo modo, naquele momento o Brasil efetivamente se tornava moderno. Prova disso são, por exemplo, as canções da bossa
nova, expressão de uma realidade urbana por excelência, com sua
dimensão a um só tempo construtiva e desconstrutiva; com seu jeito de mesclar, sem cerimônia, des-hierarquizadamente, referências
ao jazz e a fontes da cultura popular brasileira; com suas oscilações
imprevistas entre intimismo e distanciamento, entre nostalgia boêmia e autoconfiança em um “cosmopolitismo carioca” em ascenção
(a “Garota de Ipanema” na voz de Frank Sinatra). Cabe lembrar que
a despeito de toda a tacanheza que se pode reconhecer no meio artístico brasileiro daquele período, nem por isso o país estava privado de uma cultura urbana exigente e razoavelmente sofisticada em
suas principais capitais, da qual dão provas, junto aos movimentos construtivos que então se formavam, junto à novidade que era a
bossa nova no cenário internacional, também o cinema novo e uma
emergente cultura de massa que ainda não se havia estratificado o
suficiente para representar o ponto de vista único de classe.
Desde os meados da década de 1950 estava em curso no Brasil um
programa de modernização industrial, destinado a promover, segundo
o então presidente Juscelino Kubitscheck, “cinquenta anos de progresso em cinco anos governo”5, e este, saudado, festivamente, como
a tão almejada redenção do “atraso brasileiro”, era também encarado
com uma boa dose de empenho crítico por artistas e intelectuais no
Brasil e fora dele, que a despeito de tantas objeções geralmente concordavam quanto à universalidade que havia sido conquistada por um
particular capítulo brasileiro do modernismo6.
Naturalmente é Brasília — e o debate que envolve sua criação, em
meio a uma intensa disputa ideológica sobre o que poderia significar
uma “arquitetura moderna” naquele pós-guerra, ainda por cima em
um país “periférico” — a metáfora por excelência do lugar problemático da modernidade brasileira. Brasília é, de fato, a melhor metáfora
daquela forma que só se podia alcançar mediante a retroação a um
estágio formativo, conforme se aprendia da experiência neoconcreta:
“surpreender a forma em seu nascedouro”, já havia dito Ferreira Gullar
a propósito da escultura de Amilcar de Castro.
Lugar problemático, admitamos — mas por isso mesmo iluminador dos rumos que o modernismo tomava naquele momento
em escala mundial, conquanto a periferia industrializada e semi-industrializada era parte, e parte essencial, das forças que haviam deNOVOS ESTUDOS 90 ❙❙ JULHO 2011
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sencadeado e orientado sua expansão póstera. No artigo intitulado,
muito a propósito, “Nuvens sobre Brasília”, publicado no Jornal do
Brasil de 13 de maio de 1958, em uma atmosfera algo sombria, marcada
por boatos sobre o colapso financeiro que então espreitava a Novacap
(Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil, instituída em
1956 pelo governo federal para erigir a nova capital), o crítico Mario
Pedrosa afirmava: “O que importa é que ela [Brasília], não seja apenas
aquela ‘festa da arquitetura brasileira’”. E ainda:
a revolução que Brasília implicaria, ou deveria simbolizar, terá de criar raízes, descer às infraestruturas sociais, para surgir aos olhos do povo e das elites
como obra sua (e não capricho do presidente), obra coletiva, capaz de representar, amanhã, um tournant na história política, social e cultural do Brasil.
No mesmo tom premonitório, Pedrosa acrescentava ser necessário
“que Brasília não se resuma a uma série de palácios que se constroem
sobre a terra bruta, apenas individualmente acabados”; do contrário,
prosseguia o crítico,
Brasília, cuja planta já lembra a forma de um avião, acabará tendo
apenas feito uma aterrissagem tecnicamente imperfeita, assentada sobre a
cauda, na famosa Praça dos Três Poderes, o nariz no ar… Uma aterrissagem
forçada destas significa inauguração também forçada ou provisória, como a
ave de arribação que, ao pousar no chão, é apenas por um momento.
Hélio Oiticica tampouco ignorava (do mesmo modo que Mario Pedrosa) a extravagância do uso do termo “construtivismo” no contexto
nacional, e mesmo assim o julgou apropriado para nomear aquela “modernidade trespassada pelo atraso”. Parece que tal exoterismo — do país
onde a modernidade era ora percebida como demasiado precoce, ora fadada a obsolecer antes do tempo — era, para Oiticica, Pedrosa e tantos
outros, o diferencial mesmo da experiência brasileira naquele momento.
Um observatório privilegiado dos autoenganos da modernidade.
Entretanto, a ênfase na “peculiaridade brasileira” do neoconcretismo às vezes tende a demover a exigência de uma visada em escala de
um ambiente cultural razoalmente sofisticado, embora até há pouco
mantido à margem do circuito de prestígio. Tal visada provavelmente permitiria constatar o quanto o neoconcretismo compõe o quadro
geral da crise que, no auge do modernismo tardio, no princípio dos
anos 1960, envolveu a produção artística nos principais polos culturais dos Estados Unidos, da América do Sul e da Europa ocidental.
A derrocada “da metafísica europeia”, a contracultura, a antiforma ou
a antiarte eram bandeiras acenadas pela produção artística por toda
parte no mundo industrializado e semi-industrializado.
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4.
A despeito da popularização do termo para qualificar artistas,
e não obras (fala-se mais do “neoconcreto Hélio Oiticica” do que
de um período neoconcreto da produção do artista), não há como
abarcar em um mesmo golpe de vista o “neoconcretismo” e a diversidade de obras que esse termo designou entre os anos 1957 e
1960. Tampouco se pode aceitar que esse conjunto diversificado
de obras, acrescido das reflexões que se produziram na trilha aberta pelo movimento, e do campo multifacetado de interesses que ele
inaugurou para a arte contemporânea, possa jamais ser glosado
em uma rubrica, pura e simplesmente. No que concerne ao debate
interno da arte brasileira, ficaram obliteradas diferenças cruciais
entre o que aqueles artistas e outros tantos de seus companheiros
fizeram durante o período neoconcreto, marcado pelo ânimo coletivo, e o que veio depois: trajetórias não raro solitárias e por vezes
antagônicas, a que eles se lançariam depois da dispersão do grupo,
a partir de 1961.
Poucos sabem, mormente fora do Brasil, que os “Bólides” e
“Parangolés” de Hélio Oiticica vieram à tona, respectivamente, em
1963 e 1964, depois de já se ter dissolvido um grupo neoconcreto, embora o artista continuasse a entender esses trabalhos como
“construtivos”. Raros atentam para o fato de que Lygia Clark chegou aos “Bichos” em 1961, no limiar da dissolução do grupo; que os
trabalhos que Lygia Pape, Hélio Oiticica e Lygia Clark realizaram
de meados dos anos 1960 em diante revelam percursos profundamente pessoais, e, se é verdade que guardam uma origem comum
nos pressupostos neoconcretos, levaram tais pressupostos a desfechos muito diversos.
Importa observar, do mesmo modo, que a obra extensa e longeva de Amilcar de Castro, marcada pela mesma fonte neoconcreta, no
correr dos anos demonstraria nítido parentesco com correntes internacionais que haviam haurido na tradição comum do construtivismo
europeu (escultores como Jorge Oteiza e Eduardo Chilida, por exemplo, parecem pertencer a essas mesmas correntes), inclusive com a
escultura de extração minimalista. Embora haja uma diferença geracional considerável entre Amilcar de Castro e Richard Serra, e só por
mérito de um mundo globalizado seja possível atinar com a imprevista afinidade entre duas obras informadas por referências culturais tão
contrastantes, convenhamos que os gestos contundentes e sumários
de ambos, ao submeterem chapas monumentais de aço a um desempenho no limite de sua resistência, compartilham de um mesmo sentimento de despedida do mundo industrial, ainda que o façam a partir
de pontos de vista radicalmente opostos.
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Em todo caso, há mais afinidade da obra de Amilcar com essas
correntes internacionais de extração construtiva do que com os desdobramentos imprevisíveis que marcaram os trabalhos de Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica a partir de meados da década de 1960.
Enfim, resta ainda por ser feita uma reflexão mais sistemática sobre o
legado do neoconcretismo na arte brasileira, para muito além daquelas obras que orbitaram em torno dele entre os anos 1957 e 1961, para
muito além de outras tantas que se declaram herdeiras do movimento,
escoradas em alguma semelhança fisionômica com seus materiais e
procedimentos.
5.
É curioso como tantos termos célebres que “batizaram” vertentes
da arte do século xx revelam o estranho efeito de se emancipar das
obras cujo surgimento um dia saudaram, cuja singularidade histórica
buscaram proclamar. Muitas vezes, esses termos chegaram a ostentar
o estatuto de conceitos, e assim terminaram por adquirir uma vida
própria, paralela à das obras, uma vida invejosa dos rumos imprevistos que poderiam se apresentar a essas obras. Como não reconhecer a
enorme distância que vai de Robert Morris a Carl Andre, embora ambos tenham sido recorrentemente identificados sob a designação genérica de “minimalistas”? Quem recusaria admitir a heterogeneidade
das obras que desde a década de 1970 se reúnem sob a rubrica vaga
de “arte conceitual”? Como não reconhecer a abstração insondável e a
retórica impotente em que recairam nomes em sua origem destinados
a descrever procedimentos portadores de uma crucial dimensão autocrítica,
como “arte-processo” e “instalação”?
Mais do que habitualmente ocorre quando tratamos de contextualizar uma obra em determinado ambiente cultural, e assim, de modo
inadvertido, acabamos por designá-la pelo título de um manifesto, ou
reduzir sua complexidade à rubrica de um formidável achado literário produzido no calor da hora, o termo “neoconcretismo”, quando
confrontado às obras que pretendeu descrever, desde o primeiro momento parece ter encontrado uma resistência essencial por parte delas.
A radicalidade do movimento neoconcreto reside justo em que não
se esgotou em um movimento, e em que resiste a que se consigne a ele
toda uma constelação de obras pósteras, que entretanto, de maneira
inequívoca, devem algo a seu “construtivismo” sem objetos, sem programas, e livre de repertórios formais. Ele é notável porque conduziu
à própria liquidação da noção institucional de “movimento”, e porque
abriu caminhos insuspeitos à produção artística que a ele se seguiu.
Seria, portanto, equivocado relegar sem mais a questão do “construtivismo neoconcreto” ao terreno baldio das manifestações “retar112 CONSTRUÇÃO, DESCONSTRUÇÃO ❙❙ Sonia Salzstein
[7] Caldas, Waltercio. Notas, ( ) etc.
São Paulo: Edições Gabinete de Arte
Raquel Arnaud, 2006, tiragem de
400 exemplares assinados e numerados, aforismo nº 86.
Recebido para publicação
em 2 de maio de 2011.
NOVOS ESTUDOS
datárias” do modernismo, como também julgar a vertente construtiva
brasileira como mais um capítulo tardio, despolitizado e formalista
a que uma parte da mídia norte-americana havia reduzido a tradição
construtiva do pós-guerra, acolhida nos Estados Unidos, ademais, na
atmosfera mais plena da guerra fria, sob um viés positivista e como
triunfo das benesses da tecnologia.
Se a premissa de que a forma deveria “evoluir” em um mundo cada
vez mais travejado pelas exigências da racionalidade técnica produziu
impasses insuperáveis no horizonte liberal dos movimentos construtivos do pós-guerra, não deixou incólume a “dissidência neoconcreta”
— esta teria de se haver com a nova realidade tecnológica, ainda que
tivesse de dilacerar e repor permanentemente a noção de técnica para
resgatar o sentimento do corpo, destituído em meio ao inesgotável
maquinário de abstrações da sociedade de consumo.
Como se sabe, os termos construtivismo e construção tiveram,
historicamente, o duplo sentido de gênese e fundação, e de apelo ao
regresso a uma ordem anterior, mais perfeita e verdadeira; ora de um
grau zero, ora de uma fadiga da história. Não por acaso, estão associados tanto a uma arte experimental e iconoclasta que invariavelmente fenecia ao se deixar hipostasiar em um “programa”, quanto a um
classicismo que viu na inteligibilidade construtiva o caminho para
o reatamento a uma tradição ameaçada pelo pesente. A experiência
neoconcreta abriu à arte uma outra via, longe desse dualismo. Ela é
“presença e ausência máxima num mesmo objeto”, como lemos em
um aforismo “neoconcreto” de Waltercio Caldas7.
CEBRAP
90, julho 2011
pp. 103-113
Sonia Salzstein é professora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
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