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Giorgio Agamben e o novo estado de exceção graças ao coronavírus. Artigo de Edgardo Castro

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31 Março 2020

“Será necessário, inevitavelmente, pensar a quarentena. Sem pretender ser exaustivos, nem buscar instaurar qualquer tipo magistério, em nossa avaliação é inevitável uma série de deslocamentos: do protagonismo do povo ao da população, do partido ao Estado e da liberdade à responsabilidade. Em cada caso, a existência do primeiro termo requer a existência e a ênfase colocada no segundo. Toda uma retórica política, que finalmente não é apenas retórica, está a ponto de ser reformulada”, escreve Edgardo Castro, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina (CONICET, sigla em espanhol), autor do livro “Introdução a Giorgio Agamben: Uma arqueologia da potência” (Autêntica, 2012), em artigo publicado por Clarín-Revista Ñ, 27-03-2020. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Em relação à pandemia da Covid-19 e as medidas adotadas na Itália para combatê-la, Giorgio Agamben retomou alguns dos conceitos e teses de sua série Homo sacer. Em particular, o de vida nua (aquela vida desprotegida e, portanto, exposta à morte) e a tese segundo a qual, no Ocidente, se governa em termos de exceção.

Em 26 de fevereiro, qualificava como “frenéticas, irracionais e totalmente desmotivadas” as medidas que “provocaram um verdadeiro e próprio estado de exceção”. E continuava: “poderia se dizer que, uma vez esgotado o terrorismo como causa de procedimentos de exceção, a invenção de uma epidemia pode oferecer o pretexto ideal para ampliá-las além de qualquer limite”. E em 17 de março, sustentou que nossa sociedade não acredita em nada mais do que aquela vida biológica nua, dispondo-se a deixar de lado, para não perdê-la, a amizade, os afetos, as convicções... Então, perguntava-se: “o que é uma sociedade que não tem outro valor senão a sobrevivência?”

Procedendo dessa maneira, como apontamos, Agamben projeta os conceitos do Homo sacer sobre as atuais medidas de isolamento e, como acontece em alguns países, sobre um estado de sítio. Em particular, os do primeiro volume, ‘O poder soberano e a vida nua’, onde faz uma análise jurídico-filosófica dos campos nazistas de concentração e extermínio, que considera o paradigma da política moderna.

Como era de se esperar, essas expressões suscitaram indignação, tergiversações e a intervenção dos pensadores Roberto Esposito e Jean-Luc Nancy. O primeiro sustentou que a análise dos campos não é aplicável à situação atual que, ao invés de se orientar para o fortalecimento das instituições estatais, nos conduz ao seu enfraquecimento. Nancy, por sua vez, ressalta que, nessa situação, as estruturas estatais não parecem ser as protagonistas do que denomina de exceção viral, mas, em vez disso, estão presas nela.

Nesse contexto, e a fim de lançar certa luz sobre a questão, nos parece pertinente desfazer um caminho no qual, com muita frequência e insuficiente atenção a seus escritos, as posições de Agamben e Michel Foucault acerca dessa relação constitutiva da política moderna com a vida biológica, a biopolítica, que hoje aparece em primeiro plano a nível planetário, foram sobrepostas e até identificadas.

A partir do século XVIII, sustenta Foucault, a gestão da vida biológica da população se torna tarefa da política, para enquadrá-la e controlá-la administrativamente, avaliá-la de acordo com determinadas normas de saúde e analisá-la em termos estatísticos. Assim, surge não apenas uma biopolítica, mas também uma biohistória, ou seja, a possibilidade do ser humano intervir sobre a sua própria espécie biológica. A formação de uma medicina social foi um dos eixos centrais desse processo.

É um lugar comum pensar nossa Modernidade em relação à individualidade, as liberdades pessoais e o estado de direito. O modelo jurídico desempenhou aqui uma função paradigmática: direitos individuais, incorporação das liberdades das pessoas nos textos constitucionais, limitação do exercício legítimo do poder estatal. Tudo isso faz parte da nossa Modernidade, mas é, finalmente, apenas um lado da moeda. Tomando como referência o desenvolvimento da medicina social, as análises foucaultianas exploraram seu outro lado, onde emergem com não menor importância as noções de depopulação, segurança e risco.

Surge desse modo, uma imagem de nossa Modernidade muito mais complexa, onde não se trata de mudar um termo por outro (o indivíduo pela população, a liberdade pela segurança, o estado de direito pelo risco), mas de compreender que nenhum destes pode ser pensado independentemente. Com sua noção de dispositivos de segurança, Foucault procurou empreender essa tarefa.

Nesse contexto, as formas modernas de racionalidade política, que para ele - sem que este seja o lugar para explicar as razões - coincidem com o desenvolvimento do liberalismo e do neoliberalismo, podem ser resumidas em uma formulação de nascimento da biopolítica que, à luz das atuais circunstâncias, ressoa com uma tonalidade que é ao mesmo tempo efetiva e preocupante: “Pode-se dizer, depois de tudo, que o slogan do liberalismo é: ‘viver perigosamente’. ‘Viver perigosamente’, isto é, que os indivíduos se vejam sempre em uma situação de perigo ou, melhor, estejam condicionados a experimentar sua situação, sua vida, seu presente, seu futuro, como portadores de perigo”.

Foucault chegou a essas conclusões a partir da contraposição entre o que denomina de modelo “lepra” (mais próximo ao dos campos de concentração) e o modelo “peste” (o da exclusão para fora da cidade e da comunidade). Envolve uma desqualificação biológica, jurídica, política e frequentemente moral. No modelo peste também há confinamento, mas se configura de outro modo: não é a exclusão, mas inclusão em um espaço urbano reticulado e o controle minucioso do espaço de circulação. A transição de um para o outro corresponde, historicamente, ao processo de invenção das tecnologias de poder da política moderna.

Risco e segurança andam, de qualquer forma, de mãos dadas. Um dos exemplos privilegiados é, sem dúvida, o dos vários seguros com os quais o Estado e o setor privado procuram enfrentar riscos previsíveis, ou seja, cujos custos e benefícios podem ser estatisticamente calculados. A lista pode ser muito ampla: contra acidentes automobilísticos e de trabalho, saúde, desemprego, velhice, incêndio, etc.

De um certo ponto de vista, as circunstâncias atuais não deixam de ser enquadradas, pelo menos conceitualmente, no que Foucault chamou de modelo peste, em sua concepção da biopolítica e dos dispositivos que buscam arbitrar a relação entre segurança e liberdade. Mas também é verdade que essas mesmas circunstâncias colocam em jogo novos desafios e nos mostram as falências e os limites dos mecanismos de segurança que até agora, bem ou mal, funcionaram. O que ocorre quando os custos e benefícios do risco que se enfrenta não são apenas econômicos, apenas podem ser vislumbrados, sem ser calculados com antecedência?

As apreciações que surgem em primeira instância (incerteza, psicose, paranoia) são mais parte do problema do que da solução. Não seria arriscado sustentar que a relação entre o Estado e a sociedade deverá se redefinir para cada Estado e para cada sociedade em particular. Será necessário, inevitavelmente, pensar a quarentena. Sem pretender ser exaustivos, nem buscar instaurar qualquer tipo magistério, em nossa avaliação é inevitável uma série de deslocamentos (não substituições de uma coisa por outra): do protagonismo do povo ao da população, do partido ao Estado (com letras maiúsculas mais do que justificadas) e da liberdade à responsabilidade. Em cada caso, a existência do primeiro termo requer a existência e a ênfase colocada no segundo. Toda uma retórica política, que finalmente não é apenas retórica, está a ponto de ser reformulada.

 

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